Identidade, preconceito e estigma

Estamos sempre ouvindo as pessoas falarem em identidade. Pedirem para respeitar sua identidade. Mas, o que é identidade, o que podemos compreender como identidade? Estamos sempre ouvindo as pessoas falarem em identidade. Pedirem para respeitar sua identidade. Mas, o que é identidade, o que podemos compreender como identidade?Vemos o estigma ou o homem por trás dele? Estas e outras questões serão por nós trabalhadas, e desejamos que cada um de nós consiga renovar o seu olhar sobre o outro.


IDENTIDADE

(...) a identidade não é uma essência; não é um dado – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fi xa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável e contraditória, fragmentada, inconsciente, inacabada. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com as relações de poder (SILVA, 2000, p. 96-97).
No texto que você acabou de ler, TOMÁS TADEU DA SILVA apresenta a questão da identidade e da diferença da seguinte forma: A identidade é aquilo que se é, logo, a diferença é aquilo que o outro é. A identidade e a diferença encontram-se profundamente relacionadas, e é disto que nossa aula irá tratar. Que tal iniciarmos pensando sobre o que é identidade normal? Vamos lá!
Quando, por exemplo, se elege arbitrariamente uma identidade específica como parâmetro em relação a outras identidades, o que está ocorrendo é uma normalização, ou seja, essa identidade normal desejável passa a deter grande força homogeneizadora. Esta força é diretamente proporcional a sua invisibilidade.
Por exemplo: em uma sala de aula do ensino regular a identidade que se destaca é a do aluno portador de necessidade especial. Assim, tendo como ponto de partida as oposições binárias – aquilo que é X e aquilo que não é –, fica fácil notar que cada uma das partes recebe valores distintos. Uma parte é valorizada e a outra destituída de valor.
Para aproximarmos essa situação de nossa vida cotidiana, é só pensar em como é valorizado o homem jovem, branco, bem-sucedido, urbano em contraposição à visão pouco valorizada do homem idoso, pobre e rural. A identidade é aquilo que se é, logo, a diferença é aquilo que o outro é. !
As representações são formas de se atribuir sentido. Por exemplo, as descrições que acabamos de fazer desses dois indivíduos estão ligadas às relações de poder, pois o produzem e são por ele produzidas. A identidade e a diferença precisam ser elaboradas e reelaboradas, recebendo sentido frente ao mundo social e disputando-o, como problema social. A representação não é um mero palco de simples registros de significado existentes, que os grupos utilizam para forjar a sua identidade e a dos outros. O que ocorre é que por meio das representações se dão as batalhas de criação e imposição de significado. É no encontro da identidade e da sua representação que se localiza o jogo desigual do poder.
O tamanho do outro, a importância e o espaço do outro, a abordagem de um mundo que não é composto unicamente de iguais, e sim de um mundo onde alguns são videntes e outros não, alguns são ouvintes e outros não, alguns se enquadram nos padrões ditos normais e outros não, sendo estes – os outros – os diferentes, fazem com que trabalhemos a identidade e a diferença como uma questão política. Silva (2000) diz que a questão na contemporaneidade é abordar a diferença e a identidade pelo viés da política, centrar as preocupações no como se dá a produção da identidade e da diferença. Colocandose de lado uma postura, bastante em voga no momento, que é a do MULTICULTURALISMO, a questão não é apelar para a tolerância em relação aos diferentes, ou para o respeito à diversidade, e sim problematizá-la.
Não é somente entender que a diversidade existe, é ir além. Uma vez que a diferença é posta de forma distante e superficial, ela é entendida como algo exótico e curioso. Na verdade, nada de diferente e inovador está ocorrendo, pois o fato é que esta não passa de uma distinta estratégia para manter a distância aquilo que traz a semente do outro.
À medida que nos aproximamos, conhecemos e problematizamos as questões do outro, do diferente. Assim começamos a preparar uma sociedade apta a compreender e a viver, de fato, um processo inclusivo.

PRECONCEITO

O Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa define preconceito como conceito antecipado e sem fundamento razoável; opinião formada sem ponderação; superstição; convencionalismo. O preconceito é tão velho quanto a humanidade e, por essa razão, tão difícil de ser erradicado. Qualquer grupo social pode ser alvo do preconceito. Ele é constituído por três elementos: primeiro, sua base cognitiva – os ESTEREÓTIPOS; segundo, seu componente afetivo – os sentimentos negativos em relação a um grupo; e o terceiro componente é o comportamental – as ações e atitudes. O psicólogo americano GORDON WILLARD ALLPORT, em 1954, escreveu A natureza do preconceito, onde traçou as linhas fundamentais que definem a análise do preconceito como uma atitude negativa em relação a um grupo, como uma atitude hostil contra um indivíduo, simplesmente porque ele pertencia a um grupo socialmente desvalorizado. Allport nasceu nos Estados Unidos da América (EUA) e viu surgir na década de 1950 o Movimento pelos Direitos Civis dos Negros, que buscava quebrar o poder da supremacia branca, e derrubar, mais que o preconceito, o racismo contra os negros. Allport compreendia o preconceito como um fenômeno histórico e difuso. E entendia que as crenças eram um dos componentes deste fenômeno, e que essas eram sempre estereótipos negativos. Em sua obra, o autor referia-se ao ato de estereotipar como sendo fruto da “lei do menor esforço”.
Para Allport, o contato era uma forma de reduzir o preconceito. Já a noção de preconceito trabalhada pela escritora AGNES HELLER (2000) possui um enfoque distinto. Para ela, trata-se de uma categoria do comportamento cotidiano, uma categoria que serve para consolidar e manter a estabilidade e a coesão de uma dada integração social, internamente ameaçada. Aponta que o preconceito é geralmente um produto das classes dominantes, pois essas classes desejam manter a coesão de uma estrutura que as beneficia. Compreendia que o preconceito reduzia as alternativas do indivíduo. Que os homens são responsáveis por seus preconceitos. Que a decisão pelo preconceito é o caminho fácil, que na verdade devemos nos despojar do que crê a multidão, devemos tentar entender o diferente. Heller viveu o terror de um mundo que teve de lutar contra as
mais terríveis idéias de EUGENIA, um período (Segunda Guerra Mundial – 50 milhões de mortos) de fortes preconceitos religiosos e raciais. Heller se contrapõe a Allport por não entender, como ele, que há duas possibilidades de caráter: o carregado de preconceito e o tolerante, uma vez que ela não enxerga o preconceito como questão de caráter. Heller se opõe à idéia da tolerância como um ideal de comportamento, pois crê que a tolerância é um simples princípio do liberalismo. As idéias tolerantes são passivas. Para Heller, só conseguiremos nos libertar do preconceito se corrermos o risco de errar, de pensarmos individualmente, de reconquistarmos a liberdade de escolha, se abandonarmos a tranqüilidade do coletivo. Para que o homem se livre do preconceito, é necessário que ele assuma o risco do erro.

Só poderemos nos libertar dos preconceitos se assumirmos o risco do erro e se abandonarmos – juntamente com a ‘infalibilidade’ sem riscos – a não menos tranqüila carência de individualidade” (HELLER, 2000, p. 63).
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As origens do preconceito são tão remotas e se encontram tão intimamente relacionadas à história do homem que se torna difícil distinguir sua origem. Ele se constitui de diversas e complementares causas que devem ser trabalhadas em busca de um mundo onde impere a harmonia, onde antes reinava o ódio e a discriminação.


ESTIGMA

Os gregos (...) criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status de quem os apresentava (GOFFMAN, 1988, p. 7). Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal (GOFFMAN, 1988, p. 7). O estigma pode ser defi nido como um atributo que lança um descrédito profundo. ERVING GOFFMAN vai além e diz que o estigma é uma marca ou um sinal que revela desordem física ou moral, pois ele abrange a relação que se estabelece entre um atributo e um estereótipo social.
Segundo Goffman, podemos entender os normais como o grupo de pessoas que se enquadram, que não divergem das expectativas normativas, ou seja, que correspondem plenamente à categoria em que são classificados. Para um normal, a percepção de um indivíduo estigmatizado vem acompanhada de uma reação de defesa, pois esta percepção funciona como se o indivíduo estigmatizado fosse o culpado por pertencer a essa categoria. A questão do estigma como trata Goffman surge do não-acolhimento das expectativas do grupo social e das diferenças com relação aos padrões. Assim surge o rótulo. Esse rótulo é fruto das preconcepções do grupo que qualifica as pessoas de acordo com suas expectativas, na busca de manter aquilo que entende por integridade do ambiente social. Ocorre que, quando se avalia se uma pessoa pode ou não pertencer a um determinado grupo, destacam-se características que a enquadrem nele. Se ela não se encaixa no grupo em questão, passa a ser vista de forma segmentada e depreciativa.
É na relação de alteridade que se estabelece a identidade dos indivíduos, e dessa identidade surge sua carreira moral. As pessoas que têm um estigma particular tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu – uma “carreira moral” semelhante, que não é só causa como efeito do compromisso com uma seqüência semelhante de ajustamentos pessoais (GOFFMAN, 1988, p. 41).
A presença do estigma isola o estigmatizado até que este venha a conhecer outros que partilhem como ele do mesmo estigma e, entre eles, se sinta em casa. Goffman, em Estigma, apresenta diversos depoimentos. Veja, a seguir, o depoimento de um estigmatizado ao se deparar com outros iguais. Quando Tommy chegou na clínica pela primeira vez, havia ali dois meninos, ambos sem uma das orelhas por um defeito congênito. Quando Tommy os viu levou vagarosamente a mão direita à sua orelha defeituosa e, com os olhos muito abertos, disse a seu pai: “Há outro menino com uma orelha igual à minha” (GOFFMAN, 1998, p. 45).
Os indivíduos estigmatizados jamais sabem como serão recebidos pelos normais quando ocorrem encontros mistos. Eles estão sempre inseguros a respeito desses momentos, vivendo as incertezas sobre que categorias serão colocados. Entre os estigmatizados há os desacreditados – aqueles que assumem que as suas características distintivas já são conhecidas ou serão imediatamente – e os desacreditáveis – aqueles cujas características estigmatizantes não são nem conhecidas pelos presentes nem imediatamente perceptíveis por eles. Os desacreditados possuem características sociológicas comuns, pois são indivíduos que poderiam facilmente ser percebidos na relação social quotidiana, porque possuem um traço que pode se impor à atenção daqueles que encontram, destruindo, assim, a possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Vamos refletir:

Você já percebeu como é comum vermos pessoas falando com cegos aos berros? São cegos, não surdos, mas comumente agregamos a um estigma marcas estigmatizantes de outro; ou seja, tratamos cegos como se surdos também fossem. Com frequência, os paralisados cerebrais são tratados como se tivessem um deficit cognitivo. Estas associações ocorrem basicamente em virtude das marcas que pensamos reconhecer como sendo marcas estigmatizantes, ligadas aos portadores de deficiência mental.
Ao fi m de seu livro Estigma, Goffman conclui que o normal e o estigmatizado não são pessoas e sim pontos de vista. Como conclusão, posso repetir que o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quando um processo social de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro (GOFFMAN, 1988).


Cláudia Vieira de Castro Herculano
 CEDERJ

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